Nautilus

78 readers
6 users here now

Boas vindas à comunidade do canal Nautilus!

O Nautilus é nosso pequeno espaço na internet, nossa tentativa de, aos pouquinhos, e com sua ajuda, oferecer uma perspectiva diferente e crítica em relação aos videogames — com análises que atravessam os jogos que mais gostamos, e as fantásticas experiências que a mídia proporciona, assim como as falhas da indústria, nas condições materiais impostas aos seus trabalhadores e seu efeito muitas vezes nocivo na cultura.


Conheça o Nautilus:

Youtube

Twitch

Instagram

Podcasts

Apoia-se


arte por brunobrads no Discord do Nautilus

founded 1 year ago
MODERATORS
1
 
 

Antes de tudo quero dizer, quer esse texto não é um review, e nem também uma 'explicação' do anime, nem uma tentativa de esgotá-lo. São apenas alguns pensamentos coletados que tive enquanto via o anime e em algumas conversas (como interlocutores reais ou não xD). É apenas uma tentativa de compartilhar algumas reflexões e impressões. Haverão spoilers embora nada de forma direta, mas recomendo ler depois de ter assistido o anime mesmo assim. Pra quem não assistiu ainda recomendo muito que assistam, é um anime muito marcante e não é atoa q tem sido tao falado.

Memoria, ancestralidade e eterno retorno

 

"Você deve levar nossa memória pro futuro" disse Himel.

Frieren começa com o fim de uma jornada, mas antes de tudo, começa com uma celebração. A celebração de um ciclo que se fecha, de um dever cumprido de um futuro de paz.
Quando Frieren oferece aos seus amigos, mostrar a chuva de meteoros de uma vista melhor (em meros 50 anos), o que ela oferece é a repetição, a continuidade e a lembrança, a chance de 'reviver' uma 'ultima aventura divertida', também uma celebração. Mas ao contrario da chuva de meteoros, a vida humana não se repete, e Frieren percebe que, mesmo que ela tenha todo tempo do mundo, há coisas q não voltam.

Quando o aprendiz de Serie desafia Frieren na tentativa de deixar sua marca na historia "para que ela não fique sozinha no futuro", Frieren mostra que Serie na verdade, se lembra de todos seu aprendizes, ela que é chamada varias vezes de "um grimório vivo" também guarda dentro de si, cada um daqueles com quem ela conviveu, mesmo que por um breve instante.

Frieren também se lembra dos seus amigos, afinal ela deveria levar sua memória pro futuro, tal qual como a do velho Voll, e o rosto esquecido de Flame, mas ela se lembra ela é como um registro vivo daquilo que passou. no entanto esse registro só pode ser mantido ao ser reescrito, refeito, seguindo os rastros que o marcam, até o mundo dos mortos.

milanos

Durante sua jornada Frieren não so preserva esse legado em sua memória, mas o mantém, visita vilas periodicamente pra resolver pendências, proteger a espada do herói, derrotar o demônio selado, mas sobretudo, limpar estatuas, muitas estatuas, algumas delas de outros heróis. Frieren também coleta os grimórios de Flame, que são todos falsificados.
no exercício ativo da memória, e na manutenção do legado, na repetição dos atos daqueles que já se foram, Frieren não só resgata uma memória nostálgica, mas cultiva uma ancestralidade, não apenas naquilo que repetimos, mas naquilo que fazemos diferente, na forma como nos transformamos através das memórias que vivemos, da forma como somos marcados por ela, como Heiter quando decide adotar uma criança órfã desamparada, pq é o que o herói faria ou Frieren quando insiste ao recrutar Sein. Como Aura lembra, o herói Himel já não esta mais entre nós, porque então moldar suas ações pelo que ele acharia? porque ouvir esse fantasma da memória que faz com que Frieren derrote os soldados da forma "menos eficiente"? "se eu viver assim, tudo que aprendi com ele, todas as memórias preciosas, tb não desapareceriam desse mundo?" (Heiter)

Viver é também cultivar a memória daqueles que nos deixaram, é dar continuidade ao seu legado, as suas ações, seus desejos, sentimentos, saberes...
Heiter não so salvou Fern, como o herói Himel faria, mas também ensinou a ela a técnica secreta de Frieren, que ele prometeu levar pra deusa. a Deusa, que eh a única q pode se lembrar de todos, mesmo aqueles que foram esquecidos, como Kraft. Na jornada para reencontrar o seu passado Frieren aprende a viver o presente e perceber que não está sozinha, que sempre há algo que foi 'deixado' pra ela, as estatuas dos heróis, os planos articulados de Flame, os seus novos amigos que também são fruto do passado, as tradições mágicas que ela carrega, a admiração das pessoas que nem sequer eram nascidas no tempo de sua aventura anterior, mas q ouviram as historias, e continuam a celebrar continuaram por 100 anos mais, talvez por mil. Frieren, q conhece os ciclos e as repetições do mundo, aprende que cada momento e único e que um amanhecer, pode ser mais que isso quando não estamos sozinhos.

Frieren nos mostra q a memória, não é meramente um lugar de repouso, de repetição, mas de criação do futuro, de movimento e de mudança. mesmo que nossa vida seja breve, nós humanos continuando vivendo nos corações daqueles que tocamos, nas vidas que mudamos, não pelas grandes conquistas, mas nas pequenas ações que talvez passem desapercebidas. A historia talvez não se lembre de Lerne, mas Serie se lembrará, o festival da cidade talvez não continue por mil anos, mas os atos dos heróis, já mudaram de uma vez por todas, a vida de muitas pessoas, e isso, jamais ficará pra trás, pois o mundo mudou, mesmo que um pouco.

 

O jogo da imitação

 

Após vencer o demônio que tentou embosca-la na prisão Frieren se sente obrigada a fugir, pois como ela argumenta, os demônios quando morrem se dissipam em mana, diferente dos humanos que cultivam sua memória eles não deixam rastros, logo ela não pode provar o ataque que sofreu, não ha "registro". Os demônios imitam a fala humana, ela explica, apenas para enganar suas presas, são caçadores, também ela é uma caçadora, ela caça os caçadores e engana os enganadores. toda uma vida dedicada a uma farsa, uma farsa pra vencer outra farsa.

"Atire em mim" disse a copia falsa de Himel, criada por um demônio pelas memórias de Frieren "achei q vc diria isso". Uma copia falsa mas fiel, tão fiel que falha enquanto copia, enquanto enganação, pois abre o caminho pra Frieren, como o herói faria.

A palavra nisemono aparece no anime pelo menos 15 vezes. Sim eu nao só contei como fiz um compilado como devem ter notado, digamos q é o meu esforço inútil (mas posso ter 'deixado passar' alguma). Não por acaso, Himel, dessa vez o verdadeiro, o herói que salvou o mundo, era um herói de mentira com uma espada de mentira, todos os grimórios de flame são falsos, a ponto de que se torne um mero conto de fadas mas é esse conto de fadas que orienta e arrasta toda a jornada de Frieren, sua presença é inescapável, "mesmo depois de mil anos ainda estou comendo na sua mão". É sendo enganada por Heiter que Frieren encontra sua fiel aprendiz.

Frieren busca não só suas memórias, mas algo que escapa as memórias, ela é um registro vivo, mas o que a guia na sua jornada, em busca daquilo que a memória 'deixa pra trás' são as farsas, as falsificações, as estatuas (que não reproduzem a verdadeira beleza de Himel como ele diz) os mímicos (sim, os mímicos não são só uma gag gratuita, eles tem um papel na poética do anime), os clones da dungeon mas sobretudo a maior farsa de todas, a própria Frieren. Se Himel e o herói de mentira com espada de mentira que se tornou de verdade pelas suas ações, Frieren e a maga de verdade que "trai' a magia, quem engana e se esconde, que é "uma vergonha pra todos os magos".

O anime não separa a memória das falsificações, pois a própria memória é a falsificação daquilo que não se repete, o registro também é uma copia, uma farsa. Mas não ha aqui uma oposição entre o verdadeiro e o falso, não é que a copia não seja capaz de reproduzir fielmente algo, mas na sua fidelidade, ela trai o seu próprio propósito enquanto copia, como a cópia da tecnica de Eisen mas que nao tem o mesmo peso/força, ou os clones que sao cópias "perfeitas" mas ao mesmo tempo facilmente identificáveis como cópias, e acima de tudo, nao tem kokoro (coraçao/alma).

Frieren privilegia não a verdade, e nem mesmo a copia mais fiel, mas a copia que produz um desvio. um desvio que cria algo novo, ou nos leva pra outro caminho, nos transforma. Mesmo que o feitiço de detecção de mímico seja 99% correto, ela decide acreditar, todas as vezes, que algo único pode acontecer, que algo novo pode ser encontrado, não apesar, mas através dessa farsa. Como Heiter decide acreditar na deusa, pq "seria melhor q fosse verdade". O filho do nobre morto não pode ser substituído por stark, o que passou nunca volta, mas o que esta em jogo aqui não eh uma negação da copia em favor de uma origem que já se perdeu, e sim a distinção entre falsificações, entre as falsificações q são apenas enganadoras e as vezes perigosas, as vezes apenas "vazias", sem alma, sem força, cópias estéreis, e as falsificações que criam, que nos levam a novos lugares, nos inspiram, nos ensinam algo ou apenas nos dão motivo pra continuar. Aqui não ha pílula azul e pílula vermelha, não ha verdade a ser revelada, há apenas o futuro a ser criado e cabe a nós faze-lo, mesmo que seja preciso virar o mundo de ponta cabeça.

 

Você ama magia?

 

Quando Serie diz pra Frieren que ela morrerá nas mãos de um mago humano, ela descreve um futuro onde a humanidade através da magia se expandiu em seu poder a ponto de poder 'deixa-las pra traz'. A reação de Frieren é inusitada, "veremos muitas magias diferentes e novas, mal posso esperar". Onde Serie vê seu lugar de poder ameaçado pelo futuro, que Flame planeja construir, Frieren vê a possibilidade de coisa novas e interessante pra serem vividas, onde Serie vê a magia como um mero fim pra um meio, Frieren entende que o prazer da magia, está em procurar por ela. Por isso ela, é a maga que trará os tempos de paz, não porque ela pode superar Serie em seu poder, mas essa jovem elfa, que adora coletar feitiços bobos e vive sendo pega por mímicos, ela sim, é capaz de imaginar um mundo onde o Rei Demônio não existe mais, um mundo de paz, mas mais q tudo, um mundo a ser conhecido, a ser vivido, lembrado e transformado.

Frieren ama a magia, mesmo que tente esconder. ela aprende a lutar com Flame mas sua ultima lição, é uma magia 'inútil' que cria um campo de flores, a mesma magia que mil anos depois encantou Himel qnd ainda era criança. Não fosse pelas magias bobas e inúteis, jamais teria ocorrido a jornada da party pra derrotar o Rei Demônio. Pois de nada vale o poder imenso da magia, se ele não pode conectar as pessoas. Serie no fundo sabe disso. Depois de anos de luta, Frieren viaja também pra reencontrar a magia, ela talvez não perceba, mas seu encanto, que talvez ela dê como "mais ou menos" perdido, também desperta outros a sua volta, como Denken, que se recorda de porque se interessou por magia, ou Fern, que encontra um sentido e uma razão pra sorrir na alegria de sua mestra em coletar cacarecos inúteis.

Vi alguns comentários relacionando Frieren com Senhor Dos Anéis, a obra mais marcante do gênero de fantasia. Não e à toa. Senhor Dos Anéis não é só a obra mais famosa, mas ela instituiu toda uma tradição, que chamam de "alta fantasia", que influenciou quase que desde sempre a historia dos animes e videogames de forma inescapável. Uma tradição que com o tempo se tornou um emaranhado de cópias de cópias, de obras que repetem palavras mas não produzem sentido e que se dissipam sem deixar rastros, sem criar nada. Frieren não é o anime mais 'verdadeiro, nem mesmo a cópia mais fiel. Não se preocupa em 'imitar' ou em substituir os clássicos, nem sequer em apenas 'se inspirar' mas em revisitar essa tradição, esse legado, numa jornada ao passado do gênero de fantasia, vasculhar cada canto dungeon atravessando lembranças, marcas, copias vazias, armadilhas, na busca de encontrar algo que escapa, algo que "ficou pra traz", algo que esquecemos em meio a velocidade cada vez maior da passagem do tempo, nesse nosso mundo, na nossa "era dos homens", na maquina utilitarista da indústria do entretenimento, algo que nos inspira, que nos torna melhores, que nos conecta, que nos da vontade de seguir, de conhecer melhor as pessoas ao nosso redor, se entregar ao preciosismo de uma tarefa inútil, de aproveitar os momentos únicos, de recriar o mundo, enfrentar desafios zelar pelo futuro, de virar o mundo de ponta cabeça de imaginar, visualizar futuros possíveis. Frieren nos trás de volta o amor a magia, esse e seu presente para nós.

Eu realmente considero Frieren um anime geracional e fico feliz de ver que ele atingiu um publico amplo, vejo muitos relatos de como esse anime mudou a vida das pessoas de formas pequenas, tal qual o herói Himel, nesse sentido Frieren como obra também deixa um legado na historia da mídia popular contemporânea, nos fazendo lembrar porque amamos magia, fantasia, animes, e como essas obras sempre nos moveram e nos inspiraram, o impacto disso só o futuro dirá, mas eu mal posso esperar pra ver.

 

----------------

Esse texto definitivamente não é uma despedida curta xD
É um registro de algo que passou, mas permanece vivo através de nós. registro de registros(notas, lembranças conversas) de um registro (uma peça de mídia). Não e a verdade sobre o anime, nem mesmo a 'interpretação mais fiel" mas apenas uma breve jornada ridicula e divertida. Até a próxima.

 

2
3
4
5
6
 
 

Nesse domingo às 18:30 assistiremos Anatomia de Uma Queda, filme da diretora francesa Justine Triet que está concorrendo aos Oscars de melhor filme, direção, atriz, roteiro original e montagem.

Sinopse:

Uma mulher é suspeita do assassinato de seu marido, e seu filho cego enfrenta um dilema moral como única testemunha.

Letterboxd

Trailer

Participe do nosso cineclube!

O Nautflix é o cineclube do Nautilus, todo domingo às 19h assistimos a algum filme escolhido pela comunidade e depois discutimos sobre nossas impressões. Para participar basta entrar no servidor do Nautilus no Discord e pegar o cargo de Clube do Filme.

7
8
9
 
 

Nesse mês vamos ler o primeiro ensaio do livro Tecnodiversidade de Yuk Hui, Cosmotécnica Como Cosmopolítica.

O livro reúne os principais textos do filósofo da tecnologia, Yuk Hui, uma das figuras mais influentes no debate sobre tecnologia, inteligência artificial e o que ele chama de "cosmotécnicas", tecnologias desenvolvidas em contextos locais, particulares, que conteriam as saídas para a atual crise ecológica, política e social mundial.
A tecnologia foi sempre pensada como um conhecimento universal, resultado do processo de superação da dependência do homem de seus órgãos. Não há uma única tecnologia, mas sim uma tecnodiversidade – uma multiplicidade de cosmotécnicas que diferem umas das outras em seus valores, epistemologias e formas de existência.
A superação da conjuntura atual, marcada por uma crise ecológica e moral, depende de uma política de decolonização em benefício de uma pluralidade de cosmotécnicas que poderão contribuir para a criação de novos futuros tecnológicos. Eis como a cosmotécnica ganha uma dimensão cosmopolítica.

Formato:

  • Vamos usar esse tópico para as discussões sobre o texto durante a leitura
  • Faremos uma reunião geral para discutir o ensaio no Discord do Nautilus, dia 23 de março às 16h

Onde ler:

Recursos e referências:

Canal do Grupo de Filosofia no Discord do Nautilus

~~repost porque o outro não tava aparecendo no Mastodon~~

10
11
12
13
 
 

Estão no hype para algum lançamento?

14
15
16
17
18
19
 
 

Tem esse conceito de jogos pra ouvir podcast, jogos que geralmente não exigem muita atenção e podem ser usados apenas como um ruído de fundo(só que visual), não seria interessante se esses jogos se reconhececem como algo muito eficaz pra isso e criassem uma ferramenta pra integrar um player externo de audio junto ao jogo? Ou seria um trabalho inútil e não vale o tempo de desenvolvimento?

20
 
 

Podcast que trás um panorama sobre o Marco Legal dos Jogos. O que aconteceu de lá pra cá e em que pé estamos? Recomendo que qualquer um com interesse ouça.

21
 
 

Fui consumido por Void Stranger no último mês de 2023 e comecei esse ano descascando e devorando ZeroRanger, então precisei exorcizar alguns pensamentos sobre esses jogos que ficaram fervilhando na minha cabeça com o texto (ão, escrevi mais do que deveria) que segue. A intenção é ser, além de uma recomendação, um encorajamento, pois, apesar de ambos terem sido sucessos consideráveis em seus nichos, ainda percebo muito receio em dar uma chance a qualquer um dos dois em se tratando dos gêneros - um sokoban-like e um shmup - somando o fato que quem jogou costuma apresentar e discutir esses jogos por seus game designs abrasivos, o que termina dissuadindo quem está de fora. Mas, embora sim esse aspecto esteja presente, eu acredito que também possam ser boas introduções a quem pouco ou nunca jogou algo do tipo, bem como terem uns dos mais únicos e interessantes designs de qualquer coisa que já joguei, e quero te convencer a dar uma chance com o relato de minha experiência, livre de spoilers!

Essa é uma das imagens que eu mais gosto da internet. Um relato bonitinho de alguém solitário, que comprou um vinil da banda japonesa de jazz fusion Casiopea e se surpreendeu com a dedicação gentil do vendedor em se preocupar com a chegada do produto e de incluir um origami e um pacotinho de chá. Mas é só um pequeno detalhe que eu queria destacar:

"Eu pensei que não gostava de chá antes disso".

Ficou comigo porque eu também nunca curti um chá! Talvez seja questão de estar aberto a dar uma chance, num momento certo para isso como a pessoa do meme, ou talvez seja o caso de se tornar um estranho de si mesmo como alguns diriam....

Void Stranger

Eu nunca chegaria perto de um jogo como Void Stranger, já me frustrei bastante com jogos de puzzle antes, não é um gênero que estou indo atrás. Ainda mais especificamente sendo descrito como um sokoban-like (ou, jogo de empurrar caixinha/pedrinha) com visuais de GameBoy, o que me remete imediatamente aos puzzles ocasionais de um Pokémon Red ou de um Zeldinha 2D e similares, que já me deixaram desgraçado da cabeça. Enfrentar um jogo só disso seria fora de cogitação, passei distante de A Monster's Expedition e Patrick's Parabox, apesar de admirá-los de longe. Cheguei a arriscar o Baba is You pela novidade da coisa e por acreditar que não enfrentaria tanto sokoban, mas ainda assim aquele jogo tem muito do elemento clássico de empurrar coisinhas e dá pra ficar bem empacado cedo, como eu fiquei.

(Quer mais exemplos? Sofri MUITO com os puzzles das dungeons de Crosscode, larguei Machinarium por conta de um puzzle que é gerado aleatoriamente e não teria como achar uma resposta certa em guias, passei sufoco com os puzzles "bestinhas" de Carto!!!!😭)

Só que uma recomendação efusiva e a promessa de um mistério maior para se solucionar - e, possivelmente, um metajogo? - além de comparações com Outer Wilds e Tunic, me deixaram intrigado o suficiente para querer dar uma chance. O maior receio mesmo foi ler de mais de uma fonte que esse seria o "La Mulana dos Sokobans", o jogo infamemente conhecido por ferrar o jogador. Ver o trailer de lançamento, por fim, acabou afastando as dúvidas, fiquei encantado com a estética de GameBoy clássico e com a sugestão de segredos a serem descobertos:

https://youtu.be/HSkOdL2zJM4

Dei uma chance.

Felizmente, de início, Void Stranger faz um belo trabalho em te climatizar com o tipo de puzzle que você vai enfrentar e desgraçar sua cabeça por horas. Há ainda o alento de, por ter o visual inspirado em jogos de GameBoy, limitar as extensões dos puzzles a uma única tela, então nunca chegaria na largura de um puzzle de A Monster's Expedition ou na recursividade de Patrick's Parabox. Mas também o jogo não se deixa ficar maçante, há novas mecânicas e desafios sendo apresentados suavemente a cada determinada sequência, então eu realmente senti uma curva de aprendizado leniente. Dito isso, as coisas nunca ficam triviais e eu bati muita cabeça pra resolver alguns dos puzzles.

O que me fazia querer continuar prosseguindo, porém, era a promessa do mistério e uma historinha charmosa sendo contada de forma linear em alguns momentos. O jogo te deixa curioso muito rápido. Apesar de tudo, não engatei tanto de primeira, ainda no aguardo do que o faria tão único. Fiquei frustrado com alguns puzzles... passei uns dias sem abrir... voltei e fui tomando gosto por outros tipos de puzzles e, principalmente, estava curtindo DEMAIS a trilha sonora:

https://eebrozgi.bandcamp.com/track/lax-lullaby

Mas insisti.

Há um momento de "conclusão", presumidamente o que seria o "final ruim", enquanto outros jogos usariam isso de desculpa para fazer algo chocho ou agridoce, Void Stranger entrega uma sequência bem especial e um incentivo para continuar, quase uma provocação.

Persisti, e acabei descobrindo um dos meus jogos favoritos. Nunca imaginei que eu estaria até os próprios puzzles apreciando, me surpreendendo com as formas de resolver e em como vão se reinventando. Quando achei que não haveria mais como fazer algo novo no escopo de telinha de GameBoy e de movimentação por grid, o jogo me provava errado. Isso que estou deixando de falar do grande mistério em seu macro e de como você vai desvendando, mas fique certo que há muitas surpresas!

Se você já está convencido, só vai!

Aqui já quero falar em termos mais vagos do que, sobretudo, mais me fascinou. O propósito é recomendar o jogo para além de um simples "confia", só que também preservar a experiência e tentar não influenciar uma forma de abordagem.

Pois é exatamente essa palavra, há muitas formas de abordar e desvendar o que o jogo tem a oferecer. A impressão que eu tive é que o design pouco quer curar sua experiência, preferindo te deixar encontrar as ferramentas e interpretar como usá-las (ou deixar para que o acaso faça isso). De verdade, parece mais um diálogo com o próprio game designer, em que há proposições implícitas sendo feitas a você (por que essa quantidade? por que esse efeito? por que esse formato?), bem como você pode se adiantar a essas proposições, e a forma de responder pode alterar radicalmente como você acha que o jogo funciona. Você é convidado a entender e participar do design a partir de suas próprias conclusões de como o jogo opera.

Não é por acaso que a mecânica principal não é nem mostrada no trailer, pois isso pode afetar como você aborda uma das primeiras salas. Além disso, vários elementos são propositalmente ocultados e tudo vai depender de sua abordagem. Teimosia, insistência, curiosidade e experimentação são cruciais para prosseguir.

É diferente do design de Tunic e Outer Wilds, que foram comparados, pois nesses jogos ainda há uma mínima tutorialização para te acomodar numa lógica na qual os mistérios serão descobertos. Void Stranger segue caminhos bem mais obtusos, e isso pode criar situações igualmente frustrantes e interessantes. Nem toda procura ou experimento se revelará frutífera, mas se você desfruta do processo de descobrimento será um prato cheio, principalmente quando cada elemento aparentemente díspar começa a fazer sentido.

A essa altura você pode estar preocupado em quantas vezes eu falei de FRUSTRAÇÃO... E, de fato, não quero esconder nada, Void Stranger pode ser muito frustrante. Em um certo momento, eu fiz uma descoberta, mas paguei um preço caro. Dei uma desanimada por alguns dias, voltei com o conhecimento adquirido e desencadeei outras descobertas. Enquanto o jogo não chega no nível de um La Mulana, eu entendi melhor a comparação, há alguns momentos especialmente sacanas.

Mas SEMPRE há métodos, outras formas de abordagem e de aliviar o processo. Deixei de passar por certos sufocos que vi outros passarem, e dá pra passar bem menos do que eu passei. Os desenvolvedores mesmo, na descrição da página da Steam, incentivam fazer pausas (e há sugestões de pausas no próprio jogo) e pedir por ajuda, quando isso não funcionar:

Eu olhei algumas das soluções quando estava completamente exaurido, os guias da Steam oferecem soluções individuais de puzzles (descritivo ou, se preferir, com vídeos) sem entrar nos grandes spoilers e dá pra usá-los como um "empurrãozinho", pegar a ideia de como começar um puzzle e seguir dali. A única recomendação que eu deixo aqui é para que você tente resolver o mistério central sozinho, se chegar num ponto que estiver sem ideias de como prosseguir, em último recurso, sugiro usar esse excelente guia da sylvie, que vai gradando em que estágio de descoberta você pode estar e dá leves dicas para te apontar numa direção, antes da solução.

Outra dica valiosa é anotar tudo que você crê que possa ser interessante. Printscreen serve, mas me arrependo de também não ter usado o bom e velho bloco de notas ou mesmo papel e lápis, pois minhas capturas de tela ficaram uma bagunça para procurar depois.

Por fim, em minha experiência, toda frustração contribuiu em descobrir uma das estruturas de design mais únicas e interessantes que já vi num videogame, num gênero que eu nunca pensaria em encostar. Depois de terminado, foi muito bom ler os relatos de outras pessoas e ver as diferentes formas de descobertas, em especial esse relato bem extenso da Lena Raine. Enquanto há um jeito mais eficiente de fazer tudo, você provavelmente não irá encontrá-lo de primeira. Fiquei feliz com meu próprio caminho, ainda que tenha sido muito redundante - só que foi necessário pra finalmente ter um estalo.

Minha nota para Void Stranger é um chá preto de 10.

Caso esse relato tenha atiçado a curiosidade, então fica aqui um apelo para provar também. Agora se você tem um ÓDIO VISCERAL por esse tipo de puzzle (ficou traumatizado pelos puzzles do esconderijo da Equipe Rocket ou de algum ginásio no Pokémon Red ou algo assim), não recomendo mesmo, pois o momento a momento ainda é de muitos, muitos puzzles. Tendo um mínimo de tolerância, como eu tinha quando comecei a jogar, dá uma chance, você pode descobrir um jogo absolutamente fascinante.

Se nada te apeteceu, fica por aí ainda, pois vou falar de...

ZeroRanger

Quando eu finalmente julguei ter terminado tudo de Void Stranger, ou pelo menos o que eu consegui encontrar, aí sim fui dar uma pesquisada e ainda me surpreendi com uma ou outra coisinha que tinha perdido - mas que nunca chegaria lá sozinho mesmo. Mas mais do que isso eu já estava paquerando o jogo anterior do estúdio: ZeroRanger.

Um shmup (ou jogo de navinha)... Outro tipo de gênero que sempre me pareceu IMPENETRÁVEL... eu já estava muito curioso em conferir se a sensibilidade idiossincrática de design da System Erasure estaria também presente nesse... não tem como me fazerem tomar gosto por outro estilo completamente diferente, certo?!?

https://youtu.be/CSO3jV0Gz_0

Aconteceu de novo.

Foi de fato a melhor forma de ingressar nos shmups, como eu já tinha visto vários veteranos do gênero indicarem. ZeroRanger já tem uma certa reputação na cena indie, recentemente fez cinco ano de lançamento (os criadores só não conseguiram fazer uma comemoração apropriada, pois estavam completamente exaustos do lançamento de Void Stranger) e até já figurou em vídeo do videogamedunkey, o que deu uma alavancada. Uma descrição comum que vejo por aí é que seria "o Undertale dos shmups".

Apesar de ser um jogo de navinha, a jornada de ZeroRanger é bem menos turbulenta que a de Void Stranger, no sentido que o jogo está constantemente incentivando sua progressão. Seguindo uma moldura de arcade, as coisas acontecem MUITO rápido e com poucos minutos você vai se deparar na tela de derrota e colocando seu nome no ranking de pontuação. Mas a comunicação aqui é explícita e diretamente com você, há palavras de encorajamento, dicas e recompensas para te fazer continuar.

Precisei de um tempinho para acostumar os olhos em acompanhar os tiros inimigos junto com a rolagem vertical, e também poder identificar os padrões mais elaborados. Consegui completar um primeiro "ciclo" do jogo, mas já começava a vislumbrar a chegada de um teto em que eu iria bater e parar de vez, sem habilidade pra continuar. Quando chegou, eu me adaptei e insisti um pouco e me surpreendi em conseguir superá-lo. Já estava crente e resignado que uma hora não teria como, pois as coisas vão ficando progressivamente bem, bem difíceis. Só que eu vou superando... e superando...

O momento que o jogo tira as rodinhas da minha bicicleta, eu já estou investido demais, já cheguei até ali!!! Já superei outras coisas que pareciam piores!!! "Quem diabos você pensa que eu sou?!?!?!??!"

Novamente, a trilha sonora foi catalisadora em enriquecer a experiência, sendo bem mais energética aqui, pra te continuar empolgando enquanto você já está na trigésima tentativa do mesmo estágio, e funciona demais pra mim:

https://eebrozgi.bandcamp.com/track/the-sea-has-returned-2

Fiquei imensamente satisfeito do que eu consegui completar do jogo, praticamente "terminei", faltando só uma última tarefa de que ainda me falta fortitude mental quando vi no que consistia (um dia...). Acho que o mais impressionante que o jogo fez foi, sutilmente, ter me colocado na mentalidade de 1CC (em que você zera sem usar um único continue, por isso que "1 Credit Clear"), típica dos shmups. Minha melhora era perceptível nos estágios mais avançados e dava aquela coceira de começar do início e tentar de uma tacada só....

Mesmo sendo uma experiência completamente diferente de Void Stranger, a filosofia de design e estrutura comunicativa da System Erasure está presente aqui de sua própria forma: o jogo também te deixa interpretar as ferramentas e métodos de abordagem do seu jeito para prosseguir - aqui sendo mais sobre performance do que experimentação. A maior diferença, como dito antes, é que a comunicação se dá de forma bem mais direta.

Fui pesquisar sobre o jogo e achei interessante descobrir que ZeroRanger passou por várias iterações até chegar na versão final, que de fato consegue acomodar quem nunca jogou nada do gênero. Até antes mesmo de chegar na Steam, a System Erasure passou por um longo período desenvolvendo o que seria seu jogo de estreia comercial, sendo inicialmente divulgado sob o título de "FINALBOSS" em fóruns dedicados à shmups, lá nos idos de 2009. Aliás, importante dizer que a demo na Steam não reflete o estado final do jogo, que conta com mais opções para você se adaptar à dificuldade, mas é uma boa amostra da jogabilidade.

E agora eu estou até empolgado em conferir outros shmups como Drainus e Dimahoo, que a System Erasure citou como influência para a própria abertura de ZeroRanger, olha como é estiloso.

Minha nota para ZeroRanger é um chá de laranja de 10.

Pequeno bônus: sempre gostei dessa tirinha do @Bunnygirlbutts e, mesmo não me vendo chegar nesse nível, eu entendi melhor o sentimento:

Por mais "Dias de Céu Azul"

Espero que um desses tenha chamado atenção, foram duas das experiências mais instigantes em jogos que já tive. Embora tenha curtido mais a jornada críptica de Void Stranger, ainda assim acho tão interessante que a System Erasure tenha feito coisas tão diferentes, quase completamente opostos. Simplesmente ir de um jogo de navinha frenética para um jogo bem cabeçudo de empurrar pedrinha! (Inclusive, achei bonitinho ler algumas reviews no Steam de pessoas tão apaixonadas por ZeroRanger que não pensaram duas vezes quando o estúdio lançou o novo jogo: "jogo qualquer coisa que fizerem agora").

No fim das contas, ambos me pareceram como diálogos com seus criadores, em que a linguagem comum que adquirimos vindo de outros jogos, termos como vidas, progresso, (ciclos de) repetição, são utilizados e explorados de formas interessantes para comunicar o design. No próprio Void Stranger, comunicação é o tema central, implicitamente e até deixado explícito em um único momentinho especial. Notar uma sensibilidade muito particular, uma voz estranha muito única, foi fascinante.

Outro aspecto que reflete essa sensibilidade são as conquistas desses jogos, ou melhor, uma única conquista para cada jogo. Quase como quisesse que você continue explorando/investigando por sua própria curiosidade, desse um voto de confiança de que há mais coisas para desvendar.

Poderia dedicar mais alguns parágrafos para falar sobre os finlandeses da System Erasure (absurdo que sejam apenas duas pessoas! Uma encarregada de compor e programar e a outra pela história e arte, os dois dividem o game design), a origem do estúdio e suas influências, só que é melhor ouvir dos próprios criadores, essa entrevista aqui é bem esclarecedora. Não sei a intenção deles com os próximos jogos no futuro, se é continuar nessa de tornar gêneros de nicho aproximáveis e fazer coisas interessantes estruturalmente, mas o shmup parece ser mesmo o gênero de paixão da dupla, e já tinham comentado que iriam revisitá-lo. Só sei que eu também jogo qualquer coisa que fizerem agora (e espero ouvir mais versões de "Sky Blue Days", a assinatura musical do compositor presente nos dois jogos).

Independente se te interessei ou não por esses jogos em específico, que esse relato tenha pelo menos revigorado a tentar outros gêneros, tipos e estéticas de jogos, antes de decidir que a experiência não é para você. Não há garantia de nada - continuo sem gostar de chá, para ser sincero! - mas quem sabe, você pode se surpreender descobrindo conversas interessantes com quem lhe parecia estranho.

Fica à vontade pra comentar aqui se já tiver jogado, relatar da sua experiência e processo de descoberta, expandir sobre os temas (e há ainda outras conversas que esses jogos podem suscitar: a iconografia budista de ZeroRanger, o valor do game design antagonista de Void Stranger...) ou mesmo se estiver precisando de ajuda pra prosseguir!

22
23
1
submitted 9 months ago* (last edited 9 months ago) by nautilemmy@lemmy.eco.br to c/nautilus@lemmy.eco.br
 
 

Qual o jogo mais legal que você jogou em janeiro?

24
25
view more: next ›